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A Fada da Represa do Moinho

Conto de fadas compilado pelos irmãos Grimm, recontado por Cely Naomi Uematsu
A fada da represa do moinho é um conto de fadas que foi coletado pelos irmãos Grimm em meados do século XVIII, provavelmente, nas regiões campesinas da Alemanha. Trata-se de um conto que fala sobre transformações interiores: o esforço que todo ser humano deve fazer para fortalecer dentro de si o feminino e o masculino (ying/yang). Para que se encontrem, reconheçam-se e atuem juntos, serenamente.
Era uma vez, um moleiro que vivia muito feliz na companhia de sua esposa. A riqueza e a bem-aventurança cresciam para eles a olhos vistos, e, durante muitos anos, o casal conheceu somente a fartura e o lado bom de se estar aqui, na Terra. No entanto, como um ladrão que surgiu durante a noite às escondidas, o infortúnio apanhou o casal desprevenido, e, de repente, a riqueza desapareceu com a rapidez de um piscar de olhos.
Com as dívidas acumulando-se dia após dia, o moleiro não conseguia mais pregar os olhos. Então, numa noite clara de lua cheia, ele resolveu caminhar sem ter para onde. Quando deu por si, estava na beira da represa do moinho. Os raios do luar, e o barulho da roda d’água girando, suavemente, apaziguaram o seu coração atormentado.
De repente, as águas agitaram-se muito mais do que o normal e um pequeno redemoinho formou-se, bem diante de suas vistas. Do fundo das águas, surgiu uma mulher muito alta e muito imponente. Abismado, o moleiro logo percebeu que estava frente a frente com a tão temida Fada do Moinho. Ele quis fugir, mas, hipnotizado por sua beleza e pela doçura da sua voz, deixou-se ficar.
– O que tem você, moleiro? – perguntou a fada.
Mesmo tremendo, o moleiro respondeu:
– Ando sofrendo, desde que perdi quase todos os meus bens. Estou na ruína. Nem vendendo este moinho serei capaz de saldar as minhas dívidas.
– Não se preocupe mais – afirmou a fada. – Eu te farei mais rico do que jamais seria, se, e apenas se, me ofertar aquele que, neste momento, acaba de nascer em sua casa.
O moleiro pensou com os seus botões:
“Ora, o que mais além de um gatinho ou um cachorrinho, poderia ter nascido agora, lá em casa?”
E, bem contente, fechou o trato com a Fada do Moinho. Feito isso, voltou para casa, saltitando de alegria. Porém, mal entrou em sua cozinha, uma criada surgiu-lhe à frente, trazendo-lhe a fulminante notícia:
– Patrão, patrãozinho! Que felicidade! Seu filhinho acaba de nascer!
Como se mil raios tivessem atingido a sua cabeça, o moleiro sentiu-se desfalecer. Quando encontrou forças, foi ver a esposa.
– Marido, eis o nosso filhinho tão amado! – disse a esposa, com o menininho nos braços. – Ele chegou bem antes do esperado, mas, abençoadamente, tem muita saúde!
Ao colocar os olhos naquele menino tão pequenino e tão indefeso, o moleiro sentiu vertigens e começou a chorar, amargamente. Aos prantos, ele contou à sua esposa todos os detalhes de seu encontro com a Fada do Moinho e a sua desgraçada escolha.
– Nenhum ouro deste mundo vale a troca infeliz que fiz, mulher! E agora? O que será de nós?
Mesmo horrorizada, ela não soube o que dizer.  Mas, com o tempo (e porque os afazeres com o nascimento do filho se tornaram muitos), ela esqueceu-se do assunto.
Embora o moleiro ficasse cada vez mais rico, e o seu filho crescesse cada vez mais saudável, em seu íntimo, ele não tinha paz. E para garantir que a Fada do Moinho jamais colocasse as mãos em seu menino, ele o proibiu terminantemente de se aproximar da represa, sob a pena de ser, imediatamente, carregado pela maléfica Fada do Moinho para todo o sempre. Assustado por causa das terríveis consequências dessa desobediência, o menino sempre mantinha distância daquela famigerada represa.
E assim, com o passar dos anos, como absolutamente nada de anormal ou terrível acontecia, até mesmo o moleiro foi tranquilizando o seu espírito. O filho cresceu, tornou-se um jovem belo, forte e exímio caçador. E a sua coragem e generosidade também causavam grande admiração em todos que o conheciam.
Um dia, ele conheceu uma jovem, e ambos se apaixonaram à primeira vista. Passado um tempo, eles se casaram numa cerimônia simples, porém, muito comovente. O moleiro presenteou o casal com uma casa grande e confortável, bem longe das águas da represa do moinho e, por alguns anos, o feliz casal viveu sem sofrer nenhuma contrariedade do destino.
Até que um dia, o filho do moleiro saiu de manhãzinha para caçar na floresta, sozinho. Como esse era o seu hábito, a esposa não se preocupou, nem lhe fez nenhuma recomendação antes de se despedirem à porta.
Assim que entrou na floresta, o jovem encontrou o rastro de um grande corço adulto. Ele o perseguiu durante várias horas, adentrando-se na mata cada vez mais densa, e, finalmente, conseguiu abatê-lo com uma flechada certeira. Depois de preparar a carne para carregá-la para casa, ele percebeu que, misteriosamente, não estava distante da represa do moinho. Como as histórias de seu velho pai nunca se concretizaram ao longo dos anos, ele nem se lembrou de suas assustadoras recomendações, e foi até lá, para lavar as suas mãos. No entanto, ao agachar-se na beira da represa, mal encostou as suas mãos na água, uma onda enorme o encobriu e o arrastou para as profundezas.
No final da tarde, porque o marido demorava a voltar para casa, a esposa saiu à sua procura. Uma intuição secreta guiou-a até a beira da represa do moinho e, ao reconhecer o arco e a aljava de flechas, largadas displicentemente na beira da represa, imediatamente, ela sentiu o seu corpo ser percorrido por um arrepio de mau presságio: ela lembrou-se das inúmeras recomendações de seu velho sogro e foi tomada de um desespero antes inimaginável para o seu coração. Ela implorou à Fada do Moinho que libertasse o seu marido, que não os punisse por uma dívida que não lhes pertencia, mas as águas da represa continuavam calmas e sem nenhum movimento. Por fim, depois de tanto chorar e implorar, exausta, a jovem esposa tombou na relva macia e adormeceu.
Antes que amanhecesse o dia, e sem saber se ainda sonhava, ela sentiu um toque em seu ombro. Ao abrir os olhos, viu-se diante de uma velhinha de cabelos tão brancos quanto a neve.
– Por que esse desespero tão grande? – perguntou a velha, ao sentar-se na relva. – Eu ouvi o seu pranto e me condoí.
Diante da bondade no olhar da anciã desconhecida, a jovem abriu o seu coração.
– Não se preocupe – disse a anciã, com um olhar sereno. – Vamos tentar reverter isso.
E, tirando um delicado pente de ouro que prendia os seus cabelos, acrescentou:
– Tome isto. À meia-noite, fique aqui e penteie os seus cabelos com ele. Depois, deixe-o na beira da represa e aguarde. Vamos ver o que vai acontecer.
Dizendo isso, a velhinha foi embora sem dizer para onde.
À meia-noite, a jovem começou a pentear os seus cabelos. Depois, deixou o pente de ouro na margem da represa, e ficou aguardando. De repente, um redemoinho surgiu e uma onda levantou-se, arrastando o pente para o fundo das águas. Depois de alguns instantes, outro redemoinho se fez. No meio dele, a cabeça do marido surgiu. Ao se verem, ambos sentiram uma alegria imensa, mas, quando a cabeça afundou nas águas logo em seguida, eles sentiram uma tristeza ainda maior.
A esposa chorou até adormecer na relva macia. Ao amanhecer, e sem saber se ainda sonhava, ela viu a velhinha da noite anterior.
– Por que você passou outra noite chorando? – perguntou a anciã. – A Fada do Moinho não aceitou o seu presente?
– Acho que ela o aceitou, sim, porque um redemoinho surgiu e o levou para o fundo da lagoa – respondeu a esposa. – E eu vi o rosto de meu marido por alguns instantes, mas, quando a cabeça dele mergulhou novamente nas águas, me doeu demais!
– As coisas não estão tão ruins quanto parecem – afirmou a anciã. – Veja: este espelhinho tem a armação de ouro e faz par com o pente. Hoje, à meia-noite, fique aqui e mire-se nele. Depois, deixe-o na beira da represa e aguarde um pouco, porque alguma coisa poderá acontecer.
Novamente, a velhinha foi-se embora, sem dizer para onde.
À meia-noite, a jovem ficou na beira da represa, distraída, olhando-se no pequeno espelho. Quando o deixou na margem, um redemoinho formou-se quase sem fazer ruído, e uma onda surgiu arrastando o espelho para o fundo das águas. Passados uns instantes, outra onda fez surgir a cabeça de seu marido. E ele foi surgindo até ficar com os dois braços completamente para fora. Ao se verem, ambos sentiram uma alegria muito grande, mas, ao se separarem, a dor foi indescritível para ambos. Como das outras vezes, a esposa chorou e adormeceu até que o primeiro raio de sol incidisse sobre ela.
Sem dar indícios se pertencia ao mundo dos sonhos ou da realidade desperta, a velha a acordou.
– O que houve? – perguntou a anciã. – A Fada do Moinho não aceitou o seu presente?
– Ela aceitou sim! – respondeu a jovem. – E ela me permitiu ver o meu marido até a sua cintura, mas, quando ele afundou nas águas, a tristeza tomou conta de mim!
A velhinha trazia uma trouxa de pano, de onde retirou leite, aveia, frutas, água fresca e pão quentinho.
– Coma! Há dois dias que você não se alimenta – disse a anciã.
A anciã retirou da trouxa de pano (que num primeiro momento parecia bem pequena e leve) uma roca de fiar e um cesto com lã cardada. Ao ser fiada, a lã transformava-se em ouro puro.
– Que linda roca! – disse a jovem, admirada. – E que fio de ouro maravilhoso!
– É verdade – concordou a anciã. – Este será o presente derradeiro. À meia-noite, esteja aqui, fiando. Depois, deixe tudo na beira da represa e aguarde. Se não tentar trapacear nem driblar o seu destino, talvez, hoje, você consiga pelo menos uma parte daquilo que tanto almeja!
E, dizendo isso, a velha sumiu, diante de seus olhos.
A mulher fiou o dia inteiro, sem dar-se conta do passar das horas, e, à meia-noite, o carretel do fio de ouro estava cheio. A jovem deixou tudo na beira da represa e aguardou.
Após o redemoinho habitual, uma onda cresceu e arrastou a roca, o cesto e o carretel com o fio de ouro para o fundo das águas. Passado um tempo, um redemoinho enorme formou-se, e, no centro, o marido, com o seu corpo inteiro, surgiu.  Ao ver a sua esposa, o homem saltou para fora das águas, agarrou a sua mão e, juntos, correram para longe da represa. No entanto, como se um mar imenso, de repente, encobrisse todos os campos e montanhas, as águas elevaram-se da represa arrastando-os para bem longe, um do outro.
A mulher perdeu os sentidos e, quando abriu os olhos, estava numa terra completamente estranha. Como se um véu encobrisse as suas lembranças, ela não conseguia se lembrar de seu passado, muito menos recordava que, um dia, amara um homem com tanta devoção. Como precisava ganhar o seu sustento, ela aprendeu o ofício de pastora de ovelhas e, dessa maneira, os anos se passaram.
Quanto ao homem, o mesmo véu desceu sobre a sua memória e ele também se esqueceu de seu passado, e do amor que, um dia, devotara a uma mulher. Como também precisava ganhar o seu sustento, ele aprendeu o ofício de guardador de rebanhos, e, dessa forma, os anos se passaram para ele.
Até que, numa manhã de primavera, eles levaram os seus animais para pastarem na mesma colina. No entanto, quando se encontraram, não se reconheceram. Como sentissem alegria na companhia um do outro, dali em diante, passaram a pastorear os seus animais, juntos.
Um dia, a mulher recordou-se de uma estória antiga, que falava de uma represa onde vivia uma misteriosa Fada do Moinho, e o homem também se lembrou de partes dessa mesma história. Eles se abraçaram e, mesmo sem se lembrarem conscientemente de quase nada sobre o passado vivenciado juntos, um calor imenso os inundou, e eles não se separaram mais, dali por diante.

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