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Os Órfãos e o Feiticeiro

(História extraída do imaginário africano, e recontada por Cely Naomi Uematsu)
Esta história pertence ao imaginário africano. É uma história fantástica, sobre transformações hipnotizantes. Além disso, ela é muito bonita e contém muitos ensinamentos, principalmente no tocante ao destino, à forma como utilizamos os dons que recebemos do Universo, e sobre as escolhas que fazemos ao longo de nossa existência.
Há muitos anos, ela faz parte do meu repertório de contadora de histórias, e, de tanto gostar dela, eu já a transformei em dramaturgia infantojuvenil, apresentada com a técnica japonesa do KAMISHIBAI (teatro de papel).
Era uma vez, há muito, muito tempo, havia uma aldeia bem no coração da África. Nela, viviam dois irmãos que choravam juntos a sua recente orfandade, pois sua mãe, já viúva, acabara de partir desta vida. Ela deixou para eles tudo o que possuíra: um casebre com telhado de palha, e um pequeno estábulo com uma única vaca.
Depois de muito chorar e de muito se lamentar, o irmão mais velho disse ao irmão caçula:
– Não se preocupe, irmãozinho, eu vou cuidar de você! Não vou deixar que nada, nada te falte, eu te juro! Eu vou dar a nossa vaquinha de presente para o feiticeiro da aldeia. Mas não se preocupe porque, certamente, ele me dará algum dom em troca desse presente!
Com esse pensamento, o irmão mais velho amarrou a sua vaca e foi levá-la de presente ao feiticeiro. O feiticeiro percebeu as segundas intenções por trás da bela ação de desprendimento por parte do irmão mais velho, mesmo assim, ele não disse nada. Aceitou o presente e, em troca, deu ao jovem órfão o dom de transformar-se no animal que ele quisesse.
O irmão mais velho ficou muito empolgado com o seu grande poder recém-adquirido e voltou para casa, em disparada. Lá chegando, chamou o irmão caçula e contou-lhe o que aconteceu:
– Veja, irmão caçula, como eu tinha razão: o feiticeiro me deu o dom de me transformar no animal que eu quiser! Com esse dom eu vou cuidar de você muito melhor do que conseguiu fazer a nossa pobre mãe. Vamos ficar ricos! Mas você deverá guardar segredo absoluto de tudo o que ouviu aqui. Ninguém pode saber que eu posso me transformar no animal que eu quiser. Ninguém!
E assim, o irmão mais velho continuou dando as suas instruções ao irmão caçula:
– Ouça bem, irmãozinho – disse o irmão mais velho, em tom bem baixo. – Eu vou me transformar num touro muito forte e bonito. Você vai amarrar o meu pescoço com uma corda, mas deixará o nó bem fraco, para que eu possa soltá-lo sem dificuldade. Quando eu me transformar, vá até o mercado e me venda pelo melhor preço que conseguir. Fazendo isso, volte direto para casa, e fique por aqui, não vá a parte alguma. Deixe tudo por minha conta e apenas me espere. Mas, lembre-se: dê um nó bem fraco!
Assim que o irmão mais velho se transformou num magnífico touro, jamais visto antes por aquelas redondezas da África, o irmão caçula amarrou uma cordinha no seu pescoço e deu um nó bem fraquinho na ponta. Dessa forma, ele foi puxando o animal até o mercado da aldeia.
Lá chegando, o touro chamou a atenção de todos e foi até disputado pelos fazendeiros que estavam lá, negociando os seus animais. O irmão caçula conseguiu vender o touro por duas cabras e um bezerro, e, amarrando todos os animais numa corda com um nó bem apertado, voltou depressa para a sua casa.
O comprador do touro ficou muito satisfeito pelo magnífico animal que tinha adquirido por tão bom preço, e foi embora para a sua casa, levando o seu touro pela cordinha amarrada com o nó bem fraco. O irmão mais velho o seguiu calmamente, até ambos se afastarem bastante da aldeia. Num ponto da estradinha, quando não havia nenhum ser humano por perto, o touro fez um movimento brusco com o seu pescoço, conseguiu soltar o nó que o prendia e partiu em disparada pela savana africana.
– Ei, touro, pare! – gritou o pobre fazendeiro, desesperado.
O fazendeiro saiu correndo atrás do touro, mas, claro, não conseguiu alcançá-lo. Quando o irmão mais velho estava bem longe, ele pisoteou a terra deixando as pegadas do touro bem evidentes e, depois, transformou-se num leão. Fez questão de deixar as pegadas dele bem-marcadas na estrada, deixando claro para qualquer um que o touro havia sido atacado por um leão e por ele arrastado savana adentro. Feito isso, o irmão mais velho transformou-se num camundongo bem pequenino e ficou ali, escondido, observando a cena seguinte.
Quando, finalmente, o fazendeiro conseguiu chegar até o local onde o irmão mais velho havia simulado a luta entre o touro e o leão, ele concluiu exatamente aquilo que o irmão mais velho planejara.
– Oh! Que azar! – lamentou-se o fazendeiro. – Um animal tão belo morrer assim, devorado por um leão! Oh, que lástima, quanto prejuízo para mim!
E o fazendeiro voltou para casa sem o seu touro e sem os animais que havia levado ao mercado para negociá-los.
No corpo de um pequenino camundongo, o irmão mais velho assistiu toda a cena e ficou muito satisfeito por seu plano ter dado tão certo, e voltou correndo para a sua casa. Lá, ele transformou-se de volta em um ser humano.
– Ah, eu não imaginava que seria assim tão fácil! – disse o irmão mais velho para o irmão caçula. – O fazendeiro não desconfiou de nada, e ainda ficou chorando a morte do touro! O nosso plano deu certo, vamos ficar ricos, irmãozinho, ricos!
E assim, seguindo à risca o plano das transformações enganosas, o estábulo que antes tinha apenas uma vaca magra, em pouco tempo ficou repleto de animais bonitos, fortes e muito saudáveis. Os irmãos sentiam-se muito espertos e inteligentes e a cada venda bem-sucedida para eles, e com muito prejuízo para os compradores dos falsos touros, eles comemoravam com muita alegria.
– Estamos indo bem, irmãozinho – disse o irmão mais velho, satisfeito. – O nosso plano vai indo muito bem, ninguém desconfia de nada! A culpa sempre cai nesse leão que mais ninguém consegue ver! Ah! Já estão formando até um grupo de caça para tentar acabar com ele! Que bobos!
Até que um dia, quando o irmão mais novo estava no mercado para vender mais uma vez o seu irmão mais velho transformado em touro, apareceu na aldeia um forasteiro que ostentava possuir uma grande riqueza. Ele dizia-se comerciante de animais e andava pelo mercado chacoalhando um saquinho de ouro.
Acontece que esse mercador forasteiro era, na verdade, o feiticeiro da aldeia disfarçado e, assim que colocou os olhos no touro, imediatamente, reconheceu o irmão mais velho.
Fingindo interesse no animal, o forasteiro comprou o touro e entregou o saquinho de ouro ao irmão caçula, que, sem desconfiar de nada, recebeu o saquinho de ouro, entregou o touro para o mercador e foi-se embora, todo contente.
No caminho, o irmão mais velho esperou chegar até um ponto bem deserto, sem nenhum olho humano para registrar a situação. Então, ele agiu como de costume: agitou o seu pescoço com um movimento brusco, soltou o nó que o prendia à cordinha e partiu correndo em disparada em direção à savana.
Só que, desta vez, nem bem teve tempo de se distanciar quando, ao olhar para trás, viu o mercador transformar-se num poderosíssimo leopardo, que partiu a toda velocidade no seu encalço.
Desesperado, o irmão mais velho correu até quase sentir-se desmaiar de tanta exaustão. Quando o leopardo estava prestes a alcançá-lo, ele teve a ideia de transformar-se em um pássaro. E, num triz! Quando o leopardo abriu a sua enorme boca para cravar os seus dentes nele, o irmão mais velho transformou-se num passarinho e voou aliviado pelos céus.
Porém, o irmão mais velho só teve tempo de respirar um pouco. Quando ele olhou para trás, para a sua enorme surpresa, ele viu com os seus próprios olhos uma transformação inacreditável: o leopardo saltou para o ar e, nesse mesmo instante, transformou-se numa águia enorme, poderosa, que partiu no seu encalço a toda velocidade.
O irmão mais velho ficou aterrorizado e bateu as suas asas com todas as forças, voando com a maior velocidade que as suas asinhas de pássaro conseguiam. Mas, a poderosa águia o alcançou sem fazer nenhum esforço e quando ela estava prestes a abocanhá-lo, ele viu o rio lá embaixo e teve a ideia que o salvou: ele voou em direção ao rio e, quando estava quase alcançando as águas, transformou-se num peixe e saltou para dentro dela!
No entanto, o pobre irmão mais velho não teve tempo de se recobrar do susto e do cansaço. Quando olhou para trás, a águia havia saltado para dentro das águas do rio e, num passe de mágica, transformou-se num crocodilo!
E assim, de transformações em transformações, o irmão mais velho já estava prestes a morrer de tanto cansaço. Então, ele desistiu: transformou-se nele mesmo, jogou-se sobre a grama e ficou ali, bufando, esperando o seu destino se cumprir.
O feiticeiro também reassumiu a forma humana, aproximou-se do irmão mais velho, e ficou em silêncio ao seu lado. Finalmente, recobrando o fôlego, o irmão mais velho disse:
– Perdão, perdão, Mestre Feiticeiro! Eu não devia ter feito o que fiz! E ainda por cima, ensinei o irmãozinho a agir como eu! Eu estou muito envergonhado, me perdoe, por favor!
Como a intenção do feiticeiro não era promover vingança, mas, sim, educar, ele disse:
– Eu aceito o seu pedido de desculpas. Mas você terá que devolver tudo o que ganhou dessa maneira.
O irmão mais velho voltou para casa e contou o que aconteceu ao irmão caçula. Depois, os dois devolveram todos os animais e, para cada fazendeiro enganado, eles também entregaram uma moeda de ouro.
Quando todos os animais foram devolvidos, os irmãos foram até a casa do feiticeiro para devolver o restante do ouro que haviam recebido do feiticeiro e eles explicaram como haviam gastado o ouro que faltava no saquinho.
O feiticeiro ficou satisfeito, devolveu a vaca e despediu-se com palavras de bons augúrios.
Depois do período em que a vaquinha ficou sob os cuidados do feiticeiro, ela ficou forte e muito bonita. Voltou prenhe e logo pariu um lindo bezerrinho. A vaquinha produzia tanto leite que os dois irmãos tiveram muito trabalho fazendo queijos, coalhadas e outros derivados, que vendiam no mercado pelo melhor preço, já que eram os mais saborosos. Aos poucos, eles foram enchendo o estábulo com animais belos e muito fortes, desta vez, comprados com o suor e a satisfação do trabalho honesto.
Passado um tempo, o irmão mais velho escolheu uma linda vaquinha, a mais bela e forte dentre todas de seu rebanho e foi levá-la de presente para o feiticeiro.
Como, desta vez, o presente era desinteressado e sincero, o feiticeiro o aceitou de bom grado.
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